segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Brasil, país de doutores

Brasil, país de doutores


Durante uma tese de doutorado você passa por diversas situações que o estimulam a desistir, e simplesmente abandonar tudo. São longas horas de dedicação a um determinado assunto.

Durante anos você é mal remunerado e nem sonha com qualquer direito trabalhista. Afinal, você é um “estudante”. Mas também não tem diretos estudantis. Esse “limbo” acadêmico que é o doutorado termina após muito sacrifício e abstinência dos prazeres mundanos, sacrifício da saúde, pouco contato com a família e com amigos. Isso acontece com a maioria dos doutorandos em ciências biológicas. Acredito que não seja muito diferente em outras áreas do conhecimento.

Se você é exceção, acaba com uma bela tese e os resultados serão publicados numa revista de impacto ou mesmo num livro, dependendo do assunto. Em geral, a maioria dos doutorandos “só” termina a tese. Ela será impressa e arquivada em uma prateleira de alguma biblioteca, de alguma universidade. Resta a sensação de ter contribuído um pouquinho com o potencial intelectual da espécie humana. Para muitos isso basta, afinal agora você tem o título de “doutor”, é uma autoridade em determinada área e um leque maior de possibilidades poderá se abrir para você.

Segundo dicionários da língua portuguesa, “doutor” é aquele que atingiu o maior grau de instrução universitária. É todo aquele que defende uma tese na presença de uma comissão julgadora de especialistas da área, os quais julgam a originalidade e relevância da dissertação.

Apenas instituições universitárias autorizadas podem conceder o título.
No Brasil, “doutor” é também um título tradicionalmente associado a bacharéis, médicos e advogados. Em alguns casos, como para os advogados e certos religiosos, o título é garantido constitucionalmente, com origens não muito nobres, datadas do período da colonização brasileira. Em outros, como no caso dos médicos, o título é informal, garantido pelo povo como respeito ou admiração a esses profissionais.

Em países de língua inglesa, os títulos profissionais são usados de forma mais específica para cada caso ou profissão. Por exemplo, usa-se o termo “Medical Degree” ou simplesmente “MD”, informando que o profissional é formado em medicina. Caso esse profissional defenda uma tese, ganha também o direito de usar o “PhD” (Philosophiae Doctor), assim como o “Dr” brasileiro, indicando o mais alto grau acadêmico. “MD” e “PhD” distinguem dois tipos de profissionais de saúde, que podem ou não usar os dois títulos.

Voltando ao Brasil. Na realidade, em nosso país, o título de “doutor” se estende para todo “homem muito instruído em qualquer ramo” (a definição do Houaiss), incluindo engenheiro, pastor, político, economista, dentista, delegado etc. E como “instrução” é um parâmetro subjetivo, acaba-se assumindo que todo homem “bem-sucedido” teve instrução. Na sociedade brasileira, a vestimenta do indivíduo, ou seus bens materiais, refletem a imagem “bem-sucedida”. É essa imagem que faz muito engravatado ser chamado de “Doutor” pelas pessoas, principalmente as mais humildes.
Esse percurso inusitado do termo “doutor” acaba dividindo classes sociais em doutores (ricos) e não doutores (pobres). “Doutor” deixa de ser utilizado como um título e vira pronome de tratamento. O famoso “Pra você é Doutor Fulano” anda de mãos dadas com o egocêntrico fenômeno nacional “Você sabe com quem está falando?”, bem utilizado em discussões onde o interlocutor busca uma forma de demonstrar superioridade e proteção.

O uso indiscriminado do termo reflete a forte tendência do tradicional distanciamento das classes sociais no Brasil. Nesse cenário, o papel do doutor acadêmico acaba diluído, pois o número desses profissionais é bem menor. Longe de mim querer restringir o direito de uso do termo “doutor” somente àqueles que defenderam uma tese. Meu objetivo com esse texto é apenas informar o leitor que existe uma classe de doutor – aquele que faz pesquisa científica. A maioria desses doutores não gosta de ser chamada de doutor, não ganha bem e raramente usa gravata.

Há doutores bons e ruins em todas as áreas, doutores que recebem o título por mérito e outros que se autointitulam doutores.

Pequenas ações, como reciclar o lixo, economizar água ou recolher o cocô do cachorro da rua, podem alterar em muito nosso ambiente social. O uso do termo “doutor” com mais cuidado pela população pode ajudar a diminuir a distância social, valorizar os melhores profissionais em todos os ramos, além de estimular o aperfeiçoamento individual.


Postado por Alysson Muotri em 02 de março de 2010 às 15:20
Postado na coluna Espiral, no G1.

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